La Fontaine, no século XVII, já o sabia: a cegonha não consegue comer sopa num prato raso, nem a raposa num jarro estreito, pois nenhum dos objetos se adequa ao utilizador. Hoje, em plena era digital, continua a ser indispensável casar forma e função, adaptar as ferramentas – sites, apps, etc. – às necessidades de quem as usa. A linguagem clara é uma peça crucial deste processo.

 

Poupar tempo e dinheiro, ganhar qualidade de vida

O poder das ferramentas digitais é de facto revolucionário. Ter o mundo “na ponta dos dedos” dá às pessoas autonomia para tratarem dos seus assuntos onde e quando quiserem. O Estado e as empresas poupam tempo e dinheiro, e as pessoas gozam o direito de dedicar o seu tempo ao que é realmente importante na vida. Mas será que este poder libertador do digital cumpre sempre as suas promessas?

Um vocabulário misterioso

Muitas tentativas bem intencionadas de acompanhar a revolução digital desperdiçam boa parte do seu poder em problemas básicos como menus e links confusos, ou conteúdos carregados de jargão. Pensemos, por exemplo, no nosso Portal das Finanças. A ideia é excelente: permitir que os contribuintes cumpram as obrigações fiscais sem terem de esperar pela sua vez numa repartição. Mas o portal funciona segundo a lógica interna das Finanças e não segundo a lógica das pessoas que querem usá-lo.

Uma das consequências deste funcionamento é o uso de um vocabulário muito técnico, cheio de siglas e referências legais com significado misterioso para a maioria dos utilizadores. Em destaque na página de entrada da área consagrada especificamente aos cidadãos, por exemplo, avisam-nos:

O triângulo amarelo com o ponto de exclamação funciona como alerta, mas a maioria dos cidadãos fará a menor ideia do que seja o RCIF ou o SEAF? Ou de que prazo estará “previsto no artigo 9.º do RCIF”? Ou da importância que isso poderá ter (ou não) para si? Ou, já agora, do que significa “prorrogação”?

Uma arrumação caprichosa

Outra consequência deste desencontro de perspetivas no portal é uma arrumação dos conteúdos que repete lógicas processuais ou arquivísticas das repartições de finanças e que se torna insondável para as pessoas comuns.

Vejamos outro exemplo: e se um trabalhador independente quiser confirmar se abriu atividade com isenção de cobrar IVA? Chega à página dos “Cidadãos” e escolhe “Consultar”. A lista do que pode consultar está ordenada alfabeticamente em 32 títulos e 49 subtítulos: parte do princípio, pois, de que o utilizador conhece ou devia conhecer essas 81 categorias.

Felizmente, a opção que interessa parece começar por “D”, perto do início da lista, portanto: “Declarações > Actividade”. Deve ser isso. Clique. Agora a escolha parece evidente: “INICIO DE ACTIVIDADE”. Clique. Chegamos ao seguinte ecrã:

Como faremos para abrir a declaração de início de atividade? Talvez clicando no número do documento. Já vamos em 4 cliques desde o “Início”, de modo que mais clique, menos clique… Mas não. Nada acontece. Não há um único link para a declaração. Beco sem saída. Ao contrário do que tudo parecia indicar, não é aqui que vamos poder “Consultar > Declarações > Actividade”.

O caminho certo, afinal, era o menos intuitivo:

Agora que o utilizador aprendeu que tem uma “situação cadastral”, resta-lhe esperar que a informação “Exerce Actividade constante do Anexo E do CIVA – NÃO” queira dizer que não precisa de cobrar IVA aos seus clientes. Será?

As palavras refletem modelos mentais

O que correu mal neste segundo exemplo? Palavras pouco rigorosas? Sim, sem dúvida, mas as palavras não enganam só os utilizadores. Antes, já não tinham ajudado quem concebeu o portal a ver que aquela arrumação dos conteúdos só fazia sentido para quem trabalha nas Finanças. As palavras dão forma às ideias e podem relacioná-las de várias maneiras. Por isso, a tarefa de escolher as palavras certas para as pessoas comuns teria ajudado a abandonar o modelo mental das Finanças – e a arrumar os conteúdos segundo o modelo mental dos utilizadores.

Ora, os especialistas em clareza são antes de mais “especialistas em pessoas comuns”. Para o perito em comunicação clara, pôr-se na pele do utilizador de uma plataforma digital (ou do leitor de uma carta) faz parte do dia a dia. O problema é que a comunicação clara é demasiadas vezes uma preocupação póstuma — surge depois de ter morrido toda a esperança de chegar a bons resultados. É já no fim do processo que alguém vê que as coisas não estão a funcionar e se tenta resolver com palavras o que devia ter sido pensado desde o início – como se faltasse apenas aplicar uns pozinhos de cosmética verbal.

Procurar a clareza desde o início

O Dia Internacional da Linguagem Clara é uma boa ocasião para refletir sobre a importância da clareza. E para entender que os especialistas em comunicação clara devem estar presentes em todas as etapas da transformação digital, desde o primeiro dia. Porque as palavras são muito mais do que os rótulos que orientam a raposa para o prato raso e a cegonha para o jarro estreito: são também o que ajuda o fabricante de pratos e jarros a perceber que forma específica estes objetos devem ter, em cada caso, para cumprirem a sua função. Para que todas as raposas e cegonhas consigam usá-los bem.

Artigo de opinião publicado no Jornal Público, a 13 de outubro de 2016